Ecoou
um canto vindo de longe
Num
lindo dia uma luz do céu brilhou
Meus pais
foram trabalhadores ativos da Umbanda. Tenho uma lembrança na memória que me é marcante:
eu em pé no berço vendo minha mãe passar a saia branca para ir para o terreiro.
Creio que tinha mais ou menos um ano de idade. Nunca me esqueci desta cena. Morando no
Rio de Janeiro, no bairro da Pavuna, por volta de sete anos de idade acudiu-me
uma terrível urticária por todo o corpo. Mesmo tendo ido ao médico, passando
pomada e tomando corticoides não cedeu a incômoda descamação da pele, que se
encontrava numa vermelhidão como se eu tivesse ficado ao Sol de quarenta graus
um dia inteiro. Neste estado, sem dormir a uns três dias, com intensa coceira
por todo o corpo, inclusive dentro das bochechas da boca e nas solas das mãos e
pés, fui levado ao centro de Umbanda que meus pais trabalhavam e atendido pelo preto velho do chefe de terreiro que
benzia os consulentes com um rosário de lágrimas de nossa senhora sempre na mão
direita. A entidade disse aos meus pais que eu tinha compromisso nesta vida com
os Orixás e que era necessário, urgentemente, ser feito um preceito para Omulu
para que eu me curasse. Foi feito um banho de ervas de imediato e eu fui para a
casa, devendo retornar ao terreiro todos os dias ao final da tarde para tomar
banho de ervas por sete dias consecutivos. No terceiro dia eu não tinha mais
nada, a vermelhidão cessara, a descamação era mínima e a pela já retornara a
sua textura emoliente natural.
Após este
episódio fui batizado na Umbanda, rito ocorrido na Cachoeira de Itacuruça, no
interior do Estado do Rio de Janeiro e a partir de então passei a ser “cambono
mirim” de minha mãe e de suas entidades. Saudosos tempos, de prática de uma
Umbanda simples, de pés no chão batido de areia de praia. O terreiro era uma
casinha branca, caiada, com lindas bananeiras a cercá-lo.
Outra
experiência marcante que eu tive na minha
infância junto com os pretos velhos foi com a Vovó Maria do Rosário,
entidade que incorporava em minha mãe. Um certo dia saíamos da escola, eu tinha
uns 10 anos, e os colegas ao verem um despacho numa encruzilhada de rua, cheio
de quindins, marolas e cocadas, com um punhado de moedas no meio da bandeja,
não pensamos duas vezes e pegamos o dinheiro e fomos todos felizes jogar totó –
futebol de mesa – num bar perto da escola. Chegando em casa, lá pelo meio da
tarde, caio em sonolência e desânimo, com perda de apetite, secura na boca e
muita sede. Este estado de falência na minha vitalidade orgânica persistiu uns
dois dias. Ninguém sabia o que podia ser e eu já tinha me esquecido
completamente do episódio das moedas do despacho. Por volta do terceiro ou quarto
dia, no meio da tarde, eu prostrado na cama bocejando, pálido e com olheiras,
repentinamente minha mãe incorpora Vovó Maria do Rosário na cozinha. A entidade
vai até o jardim da casa e colhe alguns galhos de arruda. Com um copo d’àgua e
uma vela acesa, benze-me com os galhos de arruda. Ao terminar, pita seu
palheiro enchendo meu quarto de fumaça, admoestando-me para não pegar mais
aquilo que não era meu, alertando-me com sua apurada vidência que ao mexermos
naquelas moedas atraí para mim uma carga ruim que poderia ter me deixado muito
doente. Por outras ocasiões ainda tive oportunidade de receber o benzimento de Vovó
Maria do Rosário, que sempre que necessário incorporava em minha mãe quando ela
estava em casa. Certa vez vi-me fora do corpo físico e me olhava dormindo na
cama. Isto me apavorava, pois muitas vezes enxergava seres horripilantes dentro
do meu quarto. Lá veio Vovó Maria do Rosário no meio da noite incorporada em
minha mãe e eu acordava seguro no corpo físico com sua mão direita e o rosário
firme em minha testa. Eram fenômenos de desdobramento espiritual que na época
eu não compreendia e não dominava, prenunciando futuros compromissos com a
mediunidade que teria que assumir no momento certo.
Estes dois
episódios com os pretos velhos tiveram em comum o fato de ambos utilizarem um
rosário na mão. Temos muitos pontos cantados na Umbanda que falam do processo
de “catequização” que os africanos sofreram ao se relacionarem com o
catolicismo colonial. Se o evangelho de Jesus está vivo na Umbanda é pela
participação destes espíritos para a manutenção e multiplicação da Boa Nova
frente às massas populacionais que procuram os terreiros diariamente. Por outro
lado não morreu a cultura de suas religiosidades trazidas das diversas nações
da velha África, como nos demonstram os milhares de pontos cantados passados
pelas entidades da Umbanda e que transcrevemos um para analisá-lo:
Ecoou
um canto vindo de longe;
Num
lindo dia uma luz do céu brilhou;
Sobre
a estrela guia iluminada chegou;
A
preta velha de Aruanda a Luz Divina recebeu de Oxalá o nome de Catarina;
É
lua cheia, é lua nova, louvada seja Vovó
Catarina d’Angola.
Vamos tentar interpretar
o significado mais profundo da letra do ponto cantado de Vovó Catarina
d’Angola:
Ecoou um canto vindo de longe
O canto
trazendo a cultura africana para o Brasil veio de longe, do outro lado do
oceano, das várias nações da antiga África.
Num lindo dia uma luz do céu
brilhou
Num certo dia
um espírito iluminado reencarna como negra escrava, nascendo no berço de uma
senzala no interior do Brasil. Pode ter sido numa fazenda de cacau ou no meio
dos canaviais.
Sobre a estrela guia iluminada
chegou
Numa noite
estrelada nasce e chora pela primeira vez na senzala insípida, quente e
apinhada de escravos cansados do árduo trabalho de mais um dia causticante.
A preta velha de Aruanda a Luz
Divina recebeu de Oxalá o nome de Catarina
É
batizada no catolicismo e o atestado de batismo serve como certidão de
nascimento, pois religião e estado se confundem num só na época colonial
brasileira. Recebe de Oxalá – Jesus – o nome de Catarina. Paradoxalmente é um
espírito oriundo de Angola, onde não se cultua os Orixás, que são da Nigéria –
nagôs. Na convivência da senzala tem contato com o culto dos Orixás, num
sincretismo entre as divindades angolanas – inquices – e a dos negros
iorubanos.
É lua cheia, é lua nova,
louvada seja Vovó Catarina d’Angola.
As fases da lua ocorrem de acordo com o ângulo que avistamos a face
deste satélite iluminado pelo Sol. Cada fase dura de 7 a 8 dias, sendo que o
ciclo, com todas as fases, demora de 29 a 30 dias para ser completado. Na lua
nova a face iluminada é a oposta àquela observada da Terra, por isto ela é
vista quase apagada, a fase menos irradiante de luminosidade. Já a lua cheia o
Sol ilumina totalmente a face voltada para a Terra. Esta é a fase que ela está
mais irradiante em sua luminosidade. Lembremos que na Terra a metade das 24
horas do dia é noite. É o simbolismo dos ciclos da vida.
Independente, se estivermos numa fase “escura” ou de “luz” em nossas
consciências, em “noite” ou “dia” existencial, louvados sejam os pretos velhos que
estarão nos auxiliando, trazendo os ensinamentos do Evangelho de Jesus, suas
magias e sabedoria milenar. Outra interpretação desta estrofe é de que os
ciclos temporais da vida humana não afetam a perenidade da existência em
espírito e a mediunidade nos liga com benfeitores que atuam no plano atemporal
para nos ajudarem.
Louvados sejam os pretos velhos.
Meu profundo agradecimento e gratidão a
todos Eles.
Muita paz, saúde, força e união.
Norberto Peixoto.
NOTA 1:
As
divindades da nação Bantu ( Angola) são chamadas de inquices, vocábulo
derivado de "nkisi", que pode ser traduzido como "ser sobrenatural" ou
como "espírito que auxilia". Seja qual for a tradução, o inquice é
aquele que está entre nós para nos ajudar. Tal como os orixás e os
voduns, estas divindades também dominam uma força da natureza, possuindo
contudo suas próprias folhas, seus metais, suas pedras, suas cores etc.
Os atabaques que os chamam são tocados com as mãos, sem o uso de
varetas, e entoam cantigas rápidas e muito alegres. Texto extraído de: “Candomblé Angola bem explicado", de Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã.
NOTA 2:
Existem
muitos pretos(as) velhos(s) de Angola labutando no
movimento Astral de Umbanda e cabe citarmos este fato. Não por acaso os
negros
que vieram oriundos de Angola e da Nigéria para o Brasil, assim como
fizeram
com o catolicismo, elaboraram uma correspondência sincrética entre as
suas divindades, os Inquices
e Orixás dado que tocavam e dançavam misturados no mesmo espaço das
senzalas, o
que foi plenamente registrado na obra de diversos autores, antropólogos e
estudiosos da Umbanda e dos cultos afro-brasileiros. Para os
espiritualistas e umbandistas estudiosos e afeitos a esta temática,
elaboramos uma pequena correspondência vibratória de
nomes entre inquices e alguns dos orixás cultuados no Grupo de Umbanda
Triângulo
da Fraternidade:
- Nkosi, Roxi Mukumbe ou Roximucumbi: - inquice da guerra e
Senhor das estradas de terra. Sincretizado com o orixá Ogum.
- Kabila: - O caçador pastor. O que cuida dos rebanhos da
floresta. Sincretizado com o orixá Oxóssi.
- Mutalambô, Lambaranguange ou Kibuco Motolombo: - Caçador,
vive em florestas e montanhas, inquice de comida abundante. Sincretizado também
com Oxóssi.
- Mutakalambô: - Tem o domínio das partes mais profundas e
densas das florestas, onde o Sol não alcança o solo por não penetrar pela copa
das árvores. Sincretizado também com Oxóssi.
- Katendê: - Senhor das Jinsaba (folhas). Conhece os
segredos das ervas medicinais. Sincretizado com o orixá Ossãe.
- Nzazi, Zaze ou Loango: - É o próprio raio, entrega
justiça aos seres humanos. Sincretizado com o orixá Xangô.
- Kaviungo ou Kavungo, Kafungê, Kafunjê ou Kingongo: -
Inquice da varíola, das doenças de pele, da saúde e da morte. Sincretizado com
o orixá Obaluaiê.
- Kaiangu ou Kaiongo: - Tem o domínio sobre o fogo.
Sincretizada com a orixá Iansã.
- Kisimbi, Samba: - A grande mãe, inquice de lagos e rios.
Sincretizada com a orixá Oxum.
- Ndanda Lunda ou Dandalunda: - Senhora da fertilidade, e
da Lua, muito confundida com Hongolo e Kisimbi. Sincretizada com a orixá
Iemanjá ou Oxum.
- Kaitumba, Mikaia, Kokueto: - Inquice do Oceano, do Mar
(Calunga Grande). Sincretizada com Iemanjá.
- Nzumbarandá, Nzumba, Zumbarandá, Ganzumba ou Rodialonga:
- A mais velha das inquices, relacionada à morte e sincretizada com Nanã.
- Nvunji: - a mais jovem dos inquices, senhora da justiça.
Representa a felicidade da juventude e toma conta dos filhos recolhidos.
Sincretizado com Ibêji – cianças.
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