Sabedoria Ramatis

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sábado, 17 de novembro de 2012

Discriminação – I parte





Todos os outros protetores já haviam se desligado de seus médiuns, em razão do adiantado da hora. Além disso, não havia mais pessoas para serem atendidas. Fora uma noite igual a tantas outras, em que o salão se enchia de pessoas famintas, em busca do pão da fé e do conselho amigo dos pretos velhos. Vovó Benta, no entanto, continuava incorporada em seu aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando. O cambono-chefe se dirigiu a ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam se encerrado, autorizando-a a "subir".
- Salve, camboninho, nega véia sabe que o terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na portera!
Olhando para a porta, o cambono avistou uma senhora chegando, e, mesmo sem falar nada à preta velha, seus pensamentos reprimiram o tipo de conduta que se refletia na figura daquela mulher. Quando estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegou escondendo o rosto atrás de um xale. "Ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura! Prostitui-se nas outras noites e vem até aqui se fazer de santa!", pensava ele. Vovó Benta captou as ondas de pensamento do cambono e apenas sorriu, pensando sobre como a vida é uma caixinha de surpresas.
- Saravá, zi fia! Como suncê tem passado?
- Minha mãe, minhas noites têm sido um terror. Os pesadelos não me deixam dormir. Durante o dia tenho batido perna atrás de emprego, mas, a senhora sabe, minha fama faz todas as portas se fechem.
- Não desanime, filha. Se você decidiu realmente que quer mudar sua vida, precisará de persistência e fé. Não desista de procurar. Há um lar onde a dor está chegando; lá estão precisando de alguém de coração grande, com paciência e vontade de trabalhar. Nesse tal lugar, enquanto a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os erros de um passado que desconhece e do qual fugiu, padecendo até hoje.
- Não quero desistir, mas são muitas as portas que se fecham para mim. Às vezes, penso que não vale a pena mudar de vida.
- A escolha é sua, por isso o Grande Pai deu-nos o livre-arbítrio. No entanto, esta preta velha vai dizer para a filha que, sem subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso é o fel que o próprio Cristo Jesus precisou provar antes de se elevar aos Céus.
- Minha mãezinha, ontem mesmo vim a esta casa me oferecer para limpá-la durante o dia, como forma de começar a fazer caridade, porém me aconselharam a me restringir a vir às sessões de caridade, pois não ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos sagrados orixás.
- Mais uma vez o livre-arbítrio, filha. Jesus recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu seu coração; Ele não se limitou a julgar seus atos. Continue insistindo, filha, mostre que sua intenção é boa, peça uma chance de mostrar seu trabalho. Abençoando a mulher sofrida, de coração e forças já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos em prostíbulos, Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando que estaria protegida e amparada por todos os orixás. Despediu-se, quando a corrente mediúnica, apressada, já cantava o ponto de encerramento.
A preta velha, limpando as energias de seu aparelho com um galho de arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que alguns filhos ainda apresentam sobre o real significado da caridade. Depois de largá-lo, permaneceu ainda ali com os outros espíritos que haviam prestado serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento.
Alheios a todo o benefício que recebiam dos bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na parede, sentindo-se cansados; outros ainda pensavam no programa de televisão que estavam perdendo, graças "àquela senhora" que sempre atrasava o encerramento dos trabalhos.
A semana corria, e os acontecimentos andavam conforme a prescrição de uma força maior que a dos homens. Num entardecer, uma mulher grávida, com fortes dores do parto, tentou chamar o marido, que estava no trabalho, quando a bolsa d'água estourou, iniciando forte sangramento.
Alarmada pelo barulho, a filha adolescente saiu do quarto e, vendo a mãe no chão, desmaiada, saiu para a rua gritando e pedindo socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas não hesitou em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve tempo de lavar rapidamente as mãos e pedir à menina que providenciasse toalhas e água quente; fez o parto ali mesmo...


Vovó Benta.

Do livro: “A Missão Da Umbanda” – Ramatís/Norberto Peixoto

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