PERGUNTA: Historicamente,
na África, o indivíduo se destribaliza, deixando nas lembranças de seu passado
os cultos e ritos ancestrais quando se transfere para as cidades, adotando
rapidamente novos costumes religiosos. No processo de "migração" dos
negros para o Brasil isso não ocorreu. Por que essa inversão de comportamento?
RAMATÍS: - A manutenção das crenças nativas africanas pelos grupos raciais
que vieram "migrados" (escravos) apresentou-se como uma maneira de
sobrevivência inglória. Na verdade, era uma expressão de revolta contra a nova
condição imposta pelo dominador branco. O relho nas costas e 'as repetidas
chibatadas faziam curvar o corpo físico sob o guante doloroso das muitas horas
de trabalho ao sol, mas não curvavam o espírito dos sacerdotes iorubás,
angolanos e jejes. Os rituais e cultos de harmonização com as forças vivas da natureza,
praticados no interior da África, onde os negros podiam conviver com a força
dos orixás e senti-las encontraram forte similitude com a geografia brasileira,
rodeada de matas, montanhas, lagos, cachoeiras, rios e mares.
O homem que deixava a tribo para buscar vida nova na cidade, por
sua vontade, desejava ser considerado incluído na nova sistemática social,
tendo outra religião como fator relevante e de "progresso", o que
favoreceria seus contatos e relacionamentos. Ao contrário, no solo verde e amarelo
do enorme Brasil a ser conquistado, o escravo não teve opção de escolha
exterior, diante da subjugação do escravizador, e se apegou interiormente às
suas lembranças, como forma de adquirir ânimo para suportar os males, o que o
fez ser radicalmente fiel às suas origens. Dentro das senzalas imundas, as
diversas religiões africanas se conectavam com os orixás, por meio dos cânticos
velados e transes rituais, servindo como verdadeiros exaustores psicoemocionais
da negritude e que, junto com a utilização milenar das ervas, mantinha a saúde
de seus membros. Não sabiam todos os envolvidos que as tradições preservadas
estavam de acordo com os ditames cósmicos que impunham o enredamento cármico
dessas várias tribos negras com a raça branca, em que o excesso de hoje, para
muitos, foi a ausência de ontem para outros tantos. O negro dominado e submisso
de agora foi o dominador orgulhoso de antigamente, nas conquistas fratricidas
de novos territórios; aquele que é perseguido e rejeitado hoje também realizou
tal feito no passado. Houve perfeito equilíbrio do calendário divino, ocasionando
sábia inversão de papéis que levou espíritos endurecidos à retificação nas leis
espirituais, as quais se estendem indistintamente sobre todos,
independentemente de raça e cor da pele, pois são aspectos transitórios, em
favor da perenidade do amor que perdoa, e não subjuga.
PERGUNTA: - O Brasil tem larga tradição católica, originária
preponderantemente de Portugal, país de extrema devoção aos santos, com os
quais os fiéis estabelecem relação de favor sempre em troca de algo, presumindo
"intimidade" com as coisas do sagrado. Isso não é intensificado na
umbanda?
RAMATÍS: - A fé católica nos santos e milagres era comum aos portugueses que aportaram
no Brasil. Os lusitanos acostumados às "rezadeiras", com promessas
aos santos padroeiros, seus intercessores divinizados, acreditavam que seus pedidos
eram levados mais rapidamente a Deus. Na luta dos conquistadores contra os
índios selvagens e os negros sem alma,[6] pela preservação da
povoação dos territórios, invocavam os santos guerreiros, como Santo Antônio,
São Jorge, São Sebastião e São Miguel. Contra as doenças de pele, a tuberculose
e a hidrocefalia, entre tantas outras enfermidades da época que acometiam seus
familiares, reivindicavam apoio dos Céus por meio de ladainhas e autoflagelações
a São Roque, São Brás e São Lázaro; das mulheres, como bom comportamento,
exigiam que durante as missas intermináveis ficassem ajoelhadas, orando à
Virgem Maria, em suas aparições como Nossa Senhora das Dores, da Conceição, do
Parto, característica das famílias patriarcais portuguesas que elegiam a pureza
de Maria como modelo de comportamento para suas moçoilas e matronas.
[6] Os negros e índios passaram a ter alma, para a Igreja Católica,
a partir de 1741, com a bula papal Immensa Pastorum, selada pelo papa Bento
XIV, que declarava que essas raças, apesar de infiéis, eram receptivas à
conversão como todas as outras. A aceitação das almas dos negros e índios
simboliza a imposição da espiritualidade branca do catolicismo sobre as concepções
originais dos escravos e silvícolas, que se apresentavam de fé inabalável, profundamente
aferrados a seus mitos e rituais milenares, os quais foram combatidos ferrenhamente
com muitos assassinatos que "contribuíam" para os "Céus" na
extinção dos "endemoniados" da Terra, que não aceitavam a
catequização imposta.
Na verdade, o catolicismo colonial é profundamente mágico e
místico. Mesmo o clero proibindo as superstições pagãs, taxadas de heréticas em
plena vigência inquisitorial, o discurso doutrinário não pregava a inexistência
dos fenômenos ocultos e milagreiros. De maneira velada, os clérigos
incentivavam essas práticas mágicas de apelo ao divino para conseguir benesses
materiais, desde que a intervenção ao sobrenatural na vida dos crentes fosse
propriedade da Igreja e por ela
patrocinada. Assim, bentinhos, figuras, medalhas de santos, depois
de benzidos pelos sacerdotes e colocados debaixo de travesseiros e colchões,
detinham poderes miraculosos. Quando costurados em pequeno pedaço de pano
viravam amuletos poderosos contra as forças maléficas do demônio. Ter em casa
um vidro de água benta garantia proteção contra os maus espíritos, bastando
espargi- Ia nos cantos, entre cânticos. As fitas cortadas e abençoadas pelos
padres nas missas dominicais, se amarradas na cintura do crente, removiam
dores, nevralgias e problemas de coluna. Para as almas alcançarem os céus, além
da imprescindível extrema-unção, quanto mais velas, novenas e ladainhas
fúnebres, maiores seriam os portões de entrada do paraíso.
Todo o fascínio mágico do catolicismo se confundia com a missa
dominical: as rezas ritmadas, os sinos e campânulas, o altar com ossos e
pedaços de roupas dos santos, a purificação pela fumaça aromática dos
incensadores, os anjos e querubins retratados na abóbada celestial nos tetos
das capelas, sob os olhos intimidados dos crentes pedintes, tudo isso
estabelecia uma fascinação mágica de que as lideranças eclesiais se aproveitam
para reprimir fiéis, convertê-los e atraí-los.
Os negros e índios das cidades, proibidos de entrar pela porta
principal das igrejas, eram acomodados em pé nas laterais, aos fundos (os
melhores lugares eram da nobreza branca), e ficaram totalmente submetidos à
religião do conquistador português, sendo convertidos, porém preservando sua
religiosidade original, sem perda da fé ancestral. Nos dias atuais, na umbanda,
essa relação de troca mágica entre os consulentes pedintes e os espíritos é
ainda visível. De fato, a grande aceitação das tradições afro-ameríndias
amalgamadas com o espiritismo e os santos católicos penetrou intensamente na
alma mística do brasileiro: Existe um infindável número de terreiros
umbandistas e centros universalistas em que é possível o estreitamento do
contato com os espíritos dos mortos, criando uma relação mágico-religiosa personalizada
pelo transe mediúnico. Nela, deságua o carma grupal que envolve as individualidades
encarnadas e desencarnadas em busca de redenção espiritual, pois todas estão detidas
no orbe terrícola, impedidas momentaneamente de alcançar o passaporte cósmico
que as levará a novas paragens espirituais. Como dizem os pretos velhos em suas
mensagens simples e de grande sabedoria: "...quando a pedra aperta no
sapato, há de se parar um pouco para aliviar a dor no pé, podendo o filho
continuar depois a caminhada".
Considerando o mediunismo de forma ampla, o qual não se restringe
à umbanda, não vos deixeis enganar, tendo em vista que as preces veladas, as
posturas silenciosas e compungidas de muitos espíritas e espiritualistas da
"Nova Era" são recheadas de pedidos íntimos e secretos de apelo
materialista, além de muito escassos no merecimento, de acordo com as leis de
causa e efeito e respeitando o livre-arbítrio do próximo. Na relação individual
com o plano espiritual, são inevitáveis os maneirismos e condicionamentos
mentais arraigados no inconsciente, como podereis deduzir por vós ao avaliar
vosso próprio íntimo.
(Origem: A Missão da Umbanda - Ramatís/Norberto Peixoto - Editora do Conhecimento)
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