"No Universo não existem
fantasias nem milagres, mas tudo obedece a um processo de ciência cósmica com
leis invariáveis."
RAMATÍS, Elucidações do Além,
1964.
Cansada de tanta dor, a jovem senhora
que mais parecia uma velha, pela aparência do corpo arqueado, resolveu que
daquele momento em diante não buscaria mais o auxílio da medicina, e sim o
"milagre" dos Céus. Assim, descendo de seu pedestal de
"madame", resolveu começar subindo a escadaria da santa, durante uma
romaria. Lá rezou à sua maneira, acendeu velas e pediu cura. Ensinaram-lhe que
precisava fazer novena, e assim ela fez. Nenhum sinal, nada de o milagre
acontecer. As dores lancinantes na coluna, depois de subir a escadaria, e a
falta de resultado, após todo aquele sacrifício, já a estavam desanimando,
quando recebeu nas mãos um panfleto. Ali estavam promessas de cura, de
verdadeiros milagres operados pela força do Espírito Santo, e foi para lá que
ela se dirigiu. No primeiro dia, era preciso expulsar o demônio, e só depois de
"colaborar" com o templo e iniciar uma corrente de oração é que
receberia a graça. Ela deixou naquele lugar uma boa quantia do dinheiro que já
escasseava em decorrência de tantos gastos com a saúde, e no final de meses não
obteve nenhum resultado. Angustiada, já pensava em suicídio quando uma amiga,
das poucas que ainda lhe restavam, falou de uma sortista afamada que, além de
ver o futuro por bem pouco dinheiro, faria algumas xaropadas que com certeza a
curariam. E assim foi que gastou mais do que o prometido, e tudo o que
conseguiu foi um desarranjo intestinal.
A dor continuava. A fraqueza agora
tomava conta daquele corpo, e sua mente já estava com dificuldade de
raciocínio. Das Dores, que era sua confiável e amorosa cozinheira de longos
anos, encolhida em sua humildade, mesmo nada falando para a patroa, fazia rezas
e pedidos para que recobrasse a saúde. Sabendo da aversão que a madame tinha
pelos cultos afro, nunca ousou lhe contar que frequentava um terreiro de
umbanda na periferia.
Naquela manhã, a jovem senhora, após
uma noite de insônia e muita dor, repensando sobre. como a vida lhe estava
sendo roubada dia após dia, desejou não levantar mais da cama. Desde que as
dores se instalaram em sua coluna, só somara perdas, uma após outra. Primeiro,
foi o marido que arranjou outra mulher, diante da limitação da esposa em acompanhá-lo
em sua ativa vida social, depois, a filha casou-se e mudou de país, e, em
seguida, os amigos, foram aos poucos se afastando, pois o dinheiro
escasseava.
Das Dores, vendo que a patroa
desistia de lutar, solicitou à sua protetora, uma preta velha chamada Maria
Redonda, que lhe intuísse sobre como agir para ajudar aquele espírito enfermo.
E, naquela mesma noite, Das Dores foi transportada em corpo astral para uma
colônia espiritual denominada Aruanda e de lá carregou os ensinamentos de que
precisava para socorrer a madame. Haveria de levantar a patroa daquele leito e,
mesmo a contragosto, procuraria dar-lhe um banho quente, vestir roupas claras e
levá-la ao terreiro de umbanda, na noite de gira de preto velho. Então,
inventando uma desculpa qualquer, a bondosa negra obedeceu à sua mentora,
chamou um táxi e transportou a patroa até o local. Quando lá chegaram, a sessão
estava sendo aberta. A madame, mesmo confiando na bondosa empregada,
assustou-se ao ver que estava num "centro de macumba", denominação
que usava para esses locais. Escutando lá de fora a batida dos tambores e o
cantarolar efusivo da corrente mediúnica, seu coração disparou, suas mãos
suaram, as pernas tremeram; em sua mente fervilhavam imagens que, por mais que
forçasse, não conseguia apagar. Afloravam ressonâncias de um passado em que
usara a magia de maneira errada, bem como de quando se viu vítima da
Inquisição. Ora as imagens que tumultuavam sua mente eram de uma fogueira
enorme, onde via seu corpo queimando; eram cenas de matança de aves cujo sangue
lhe banhava a fronte. Dando um grito de horror, desmaiou. Mesmo assim, foi
transportada para o interior do templo por dois cambonos e colocada aos pés do
congá. Rapidamente, sob as ordens do guia-chefe que já estava atuando em seu
médium, formou-se uma corrente de medianeiros ao seu redor, que, com a puxada
de pontos cantados, incorporavam seus guias e protetores.
A vibração de exu se fez necessária
para a contenção das forças que teimavam em comandar aquele espírito que
ocupava o corpo inerte. Dementados pelo ódio, nem perceberam que a luz os havia
atraído, e assim se tornaram iscas para que fosse localizado no plano astral
seu chefe, mago negro que comandava a operação. Além de todos os socorros
efetuados no Astral, os trabalhadores espirituais ali presentes, por intermédio
dos médiuns que cediam seus aparelhos, limpavam e curavam os corpos imateriais
da jovem senhora, que agora acordava sob o amparo da bondosa Das Dores. Sem
tempo de tomar qualquer atitude, foi levada pela empregada a uma sala interna
do templo, onde, deitada em maca coberta por alvos lençóis, ficaria até se
restabelecer do desmaio. Enquanto isso, na frente do congá eram puxados pontos
cantados na linha de Yorimá para que a sessão, destinada aos pretos velhos,
pudesse ser iniciada. Entre essências e ervas, e . sob a égide do Astral
superior, os bondosos e sábios espíritos baixavam suas vibrações para chegar
até os médiuns designados para o trabalho da noite. Um a um, sentadinhos em
seus tocos, cachimbando e batendo o pé, atendiam amorosamente os consulentes
que se enfileiravam em busca de alento e conforto. Já no final da sessão, o
guia-chefe ordenou que fosse trazida a filha adoentada para que Maria Redonda a
atendesse. Ainda um tanto assustada, mas sentindo imensa paz e quase sem dor
nenhuma, a madame se deixou levar, embalada pelos bons fluidos que inundavam
aquele ambiente tão simples, onde podia sentir-se tão protegida. Sentada em
frente à sua amada cozinheira, estranhou vendo-a vestida em traje branco,
fumando cachimbo e falando:
- Saravá, zifia!
Não obtendo resposta, e sabendo da
limitação de entendimento e da pouca fé daquele espírito, a bondosa preta velha
manifestou-se pela médium de forma que a consulente pudesse entender, ou seja,
num linguajar mais adequado ao seu nível cultural.
- A filha está assustada, e a preta
velha entende isso. Entende também que estavas carregando nas costas, uma mala
cheia de pedras da qual não querias te desvencilhar. Por isso, atendendo ao
pedido de meu aparelho, e de teus protetores, autorizado pela Lei do Grande Pai
Oxalá, foi permitido que pudesses ter a oportunidade de largar essa mala no rio
da vida, e, assim, aliviar o peso de teu carma. Depois de tantos caminhos
percorridos, depois de tantos milagres negados, hoje, aqui neste humilde
templo, terás a oportunidade de dizer sim ou não, pelo teu livre-arbítrio, à
continuidade desse sofrimento. Escolheste o trabalho mediúnico para sanar erros
do passado e, no entanto, deixaste que o preconceito e o materialismo vencessem
a disputa entre o bem e o mal; por isso a dor está sento uma espécie de
"detonador". Nada tens no corpo físico, e disso já és sabedora. O mal
de que padeces se chama "mediunidade reprimida", cuja demasia de
ectoplasma está cristalizando já nos corpos materiais, quando não sendo
utilizado pelas trevas, por falta do bom uso. Enquanto buscavas o milagre vindo
de fora, teus amparadores nada podiam fazer, a não ser deixar que se cumprisse
a Lei. E assim foi feito. Agora a preta velha fala para a filha que só existe
um caminho a ser trilhado: o do amor. Amor que vai curar, auxiliar, amparar.
Neste templo existe um toco esperando
uma preta velha que usará um corpo branco para se manifestar.
Por bom tempo, Das Dores foi a mestra
daquela madame diplomada. Perguntas e mais perguntas foram respondidas com a
simplicidade e o amor de que são portadores os espíritos evoluídos e humildes.
Hoje, enquanto a sociedade abastada
veste os corpos de ilusão da riqueza, da fama, do falso sucesso, uma antiga dama
dessa casta dirige-se ao templo de umbanda para lá prestar a caridade.
Pés descalços, sentada no toco,
saudável e feliz, leva conforto e luz àqueles a quem as trevas insistem em
levar a dor. Aprendeu que a fé às vezes precisa de um parto difícil para nascer,
mas que só ela dá sustentação real a tudo aquilo que existe em nossa vida.
Vovó Benta
Do livro: “A
Missão Da Umbanda” Ramatís/Norberto Peixoto – Editora do Conhecimento.
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